quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Uma noite especial











Naquela noite um pobre saiu a implorar auxílio batendo de porta em porta:

— Socorrei-me, boas almas! Em casa acaba de nascer uma criança e eu preciso de acender o lume para aquecer minha esposa e o pequenino. Dai-me um pouco de brasas, pelo amor de Deus!

Mas era alta noite. Toda a gente estava a dormir, e ninguém lhe respondia. De repente, o homem avistou, ao longe, um clarão e, caminhando para lá, encontrou uma fogueira acesa, e em volta dela um rebanho de ovelhas e carneiros brancos a dormir, e um velho pastor a guardá-los, também mergulhado no sono.

Quando o homem que andava em busca de brasas chegou ao pé dos carneiros e das ovelhas, o soar dos seus passos acordou três canzarrões que dormiam aos pés do pastor. As largas bocas dos rafeiros abriram-se para ladrar; mas nenhum som saiu delas. O homem notou que o pelo dos ferozes animais se eriçava e que as suas presas aguçadas luziam ao clarão da fogueira. E todos três se atiraram assanhados contra ele. Um abocanhou-lhe uma perna, outro um braço e o terceiro segurou-lhe a garganta; contudo, as mandíbulas dos três animais ficaram inertes e o homem não foi mordido.

Quis ele então aproximar-se mais do fogo, para de lá tirar algumas brasas. Mas os carneiros eram tantos e estavam deitados tão juntinhos que não havia como passar por entre eles. Foi-lhe forçoso pisá-los para avançar; e nenhum deles acordou, nem se mexeu.

Quando o homem chegou ao pé da fogueira, o pastor que dormitava em sua enxerga de peles ergueu-se impetuoso e irado. Era criatura ruim e mal-encarada. Ao ver ali o desconhecido, agarrou, lesto, uma enorme pedra e arremessou-a contra ele. O perigoso seixo partiu directo ao homem; quando, porém, ia atingi-lo, desviou-se e foi espatifar-se no chão.

Então o homem, aproximando-se do pastor, falou-lhe assim:

— Compadece-te de mim, amigo, e deixa-me levar algumas brasas. Em minha casa acaba de nascer uma criança e eu preciso acender o lume, para agasalhar minha esposa e o pequenino.

O primeiro impulso do pastor foi o de uma recusa cruel; pensou, porém, nos cães que não tinham ladrado nem mordido, nos cordeiros que não tinham fugido, na pedra que não tinha querido ferir o homem. E sentiu um terror vago, indefinível.

— Leva o que quiseres. — respondeu secamente.

Ora, o lume estava agora quase a apagar-se. Nem ramos a arder, nem achas grandes. Só havia um monte de brasas miúdas, e o homem não tinha pá, nem qualquer coisa em que pudesse levá-las. Ao ver isto, o pastor repetiu:

— Podes apanhar as brasas que quiseres!

Mas, no íntimo, regozijava-se maldoso, certo de que o homem não podia levar um braseiro nas mãos nuas. Mas o outro abaixou-se, afastou as cinzas, tomou de uma porção de carvões incandescentes e pô-los numa aba da esfarrapada túnica. E as brasas não lhe queimaram as mãos, não lhe queimaram a véstia e ficaram a brilhar nelas como rútilos rubis. E o desconhecido partiu.

O pastor, vendo tudo isto, disse de si consigo:

— Mas, que noite é esta, em que os cães não mordem, e os carneiros não se espantam, e a pedra não fere, e as brasas não queimam?

Foi ao encalço do homem e interrogou-o:

— Que noite é esta, em que até as próprias coisas se mostram inclinadas ao amor e à piedade?

O homem respondeu:

— É a noite de Natal, meu amigo. Jesus, Salvador, acaba de nascer...