segunda-feira, 9 de março de 2009

O PINTOR TRISTE

Imaginem uma pintura nuns azulejos, feita num muro muito antigo em pleno jardim municipal, na nossa aldeia, vila, ou cidade. Observem-na bem, mais de perto ... não tenham medo ... Isso! Mais de perto.

Agora, escutem! Não ouvem uns sons? Façam um esforço que será recompensado ... "tshshuuuupstttttushhhh"

Eu não disse?!!

Esta pintura tem uma história, como todas as pinturas existentes por esse mundo fora.

Peço a vossa atenção para esta história. Ela é especial porque contém o próprio pintor: O Pintor Triste!

PINTOR – "Estou farto de estar aqui, preso nesta pintura, neste muro!" – dizia o pintor pintado no mural do parque municipal. Os seus azulejos coloridos em tons de azul, embelezavam aquele muro florido e admirado por todas as pessoas à tantos anos e por causa daquele pintor.

PINTOR – "Há vinte anos que estou aqui! Estou farto, é tão aborrecido, não sei o que fazer ... é sempre a mesma coisa: pintar, pintar e nunca mais acabo esta pintura!"

Tinha razão. Esta pintura havia sido feita há exactamente vinte anos. Hoje, era um dia especial, completava vinte anos, mais um triste aniversário para que nada acontecesse de diferente para festejar.

Faltavam cinco minutos para a comemoração das últimas pinceladas desta obra.

Enquanto não chegava o momento, o nosso pintor continuava tentando terminar a sua tela incompleta.

Com o pincel na mão, braço esticado e embora se esforçasse, não conseguia qualquer movimento.

Estava e sentia-se preso, encurralado naquela prisão feita de azulejos.

Era muito infeliz o pintor daquele moral florido. Notava-se no seu rosto uma expressão de descontentamento, de tristeza. De tal modo que quem por ali passava chamava-lhe: O Pintor Triste.

Jamais se descobrira o significado da sua tela incompleta. Parecia uma pessoa ... não; talvez uma árvore ... também não ... enfim, era estranhamente bela e misteriosa.

Subitamente, ao fim da tarde, o tempo mudou de cara. Muitas nuvens carregadinhas de chuva apareceram no céu, soprando um ar frio e cortante.

Pouco depois, o estrondo de um trovão estremeceu todo o parque e as árvores tremeram de medo.

PINTOR: "Era só o que faltava no meu aniversário, uma "carga d’água". Quem me dera poder sair daqui, caminhar pelo parque e abrigar-me noutro sítio qualquer! Maldita prisão!"

Não faltou muito para que caíssem os primeiros pingos.

PINTOR – "Eu não disse, já está a chover! Vou ficar todo molhado!"

Chegara o momento. Parabéns a você pelos 20 anos de vida!

Algo nunca visto, estava para acontecer.

Então, por entre ruidosos pingos, um relâmpago luminoso deslizava rapidamente aos ziguezagues, caindo estrondosamente sobre a pintura do muro do parque municipal.

Tudo ficou iluminado como se fosse dia e o muro pintado, ardia como frágeis folhas de papel.

Coitado do pintor triste, tinha chegado o seu fim. Vivera somente vinte anos, mas livrara-se finalmente daquele cativeiro imposto pelo seu criador.

O tempo foi passando e o fogo desaparecera por completo. A tempestade seguiu o seu caminho e o bom tempo voltou.

Pouco depois alguém tossiu. Como era possível se não estava ninguém no parque?!

Novamente se ouviu o mesmo som. Sim, alguém tossia e uma voz rouca e muito fraquinha se ouviu.

PINTOR – "Que grande susto! – volta a tossir – Pensava que morria!"

O inesperado, aconteceu!

PINTOR – "Onde estou? Não vejo a minha tela, o meu quadro? Nem os meus pincéis?! – estava baralhado – Mas, eu não estou no mural ... estou no chão! NO CHÃO!!!!!"

O pintor dava pulos pelo chão molhado. Estava muito contente com a sua prenda de aniversário.

PINTOR – "Já não estou preso na pintura! Estou livre, livre, LIVRE!!"

Gritava de alegria o Pintor Triste, triste não, Alegre! A partir de hoje seria "O Pintor Alegre", liberto como por magia, pela mão da natureza. E agora, para onde ir? – pensava o pintor.

PINTOR – "Já sei! Primeiro vou conhecer o resto do parque. Há muito que tenho vontade de beber água naquela fonte do "cara feia". Depois, logo se vê!"

Atravessou o parque, correndo por entre as pernas de algumas pessoas que voltavam curiosas com os estragos causados pela súbita tempestade.

A noite surgia lentamente e vinha acompanhada pela dona Lua em seu xaile branco de nuvens. Os seus reflexos, podiam ver-se no belo rio de prata alguns metros abaixo do Miradouro do Espião.

Plim, plim, chap, chap ... eram os sons causados pela água soprada da boca do "Cara feia", ao cair na bacia de pedra por baixo. Junto à fonte, o Pintor saltou para a borda da bacia, sentindo logo alguns pingos marotos sobre si.

PINTOR – "Mas, o que é isto? Estou a perder a tinta! Tenho que sair já daqui!" – e salta para o chão.

Nesse preciso instante, aproximava-se um menino para beber água.

MENINO – "Já vou mãe, vou beber água!"

Por pouco que não chocava com o pintor. O susto é grande para ambos.

MENINO – " Ó mãe, ó mãe – grita – vi um fantasma pequenino ... era transparente, cinzento!"

MÃE DO MENINO – "Um fantasma?! – ri-se – lá estás tu a imaginar coisas. Vem brincar para aqui, não te quero sujo nem molhado!"

MENINO – "Mas é verdade! Olha, desapareceu!"

Escondido atrás de uns arbustos, o nosso pintor está infeliz.

PINTOR – "Um fantasma, eu?! ... e têm medo de mim! Não posso andar livremente por aí, senão confundem-me com um fantasma! Também não posso beber água senão desfaço-me! Que tristeza ... e queria eu ser igual aos pintores verdadeiros!"

Pensando na sua triste sorte, o pintor está tão distraído que não vê um cachorrinho amoroso farejando o local. O animal, ao ver aquele "bicho", arrebita as orelhas e começa a ladrar.

O pintor tenta afastá-lo.

PINTOR – "Vai-te embora, sai daqui!"

Percebendo que não há nada a fazer, desata a correr. O cão persegue-o abanando o rabo de contentamento.

E agora, como escaparia de tremendo monstro? – pensava o pintor

Já fora do jardim e quase sem forças, ainda consegue saltar e escorregar pela abertura de uma caixa de correio, de uma casa alguns metros abaixo do parque.

PINTOR – "Uuuuuuuuiii ... Que grande escorrega, até parece o escorrega do parque infantil! Estou salvo, foi por pouco ... estou tão cansado, não me lembro de ter corrido tanto em toda a minha vida. Agora me lembro, eu nunca corri! – respira fundo – Onde estou? Que local é este? É uma casa?!? Está tão escuro que custa ver alguma coisa!"

Caminha lentamente pensando "que mais me irá acontecer?"

PINTOR – "Olha, na parede, são quadros ... estão ali familiares meus ... são pinturas!"

Estava numa Galeria de Arte.

PINTOR – "Tantos quadros, tantas pinturas coloridas!"

Estava muito confuso, nunca vira nada assim.

PINTOR – "Mas, são pinturas diferentes daquela onde eu estava! São pinturas feitas em telas, quadros de parede!"

Numa parede lia-se – Galeria de Arte, mais à frente por cima de uma porta fechada, numa placa estava escrito – Atelier.

PINTOR – "Já sei, é onde fazem as pinturas ... foi ali que me fizeram, penso!"

Caminhando curioso e observando atentamente tudo em redor, o pintor ouve um ruído.

PINTOR – "O que foi isto? Ouvi um barulho?!? Vêm à minha procura, preciso esconder-me!"

Mais à frente, num recanto, estava uma estátua enorme, pelo menos para ele.

PINTOR – "Ali deve servir, atrás daquele estátua – começou a correr – tenho tanto medo!"

Já por detrás da estátua de Santa Luzia, o Pintor Triste e amedrontado aguarda.

Pouco faltou para que um foco de luz atravessasse toda a sala. De lanterna em punho, o desajeitado ladrão apreciava cuidadosamente todo o "recheio" da galeria de arte.

"Sim senhor", pensava contente ao analisar um quadro famoso de Pablo Picazo. Subitamente, a luz apontou para onde estava o pintor. Este, ao sentir-se descoberto, estremeceu de pavor.

PINTOR – "Ai, fui descoberto!"

O nosso amigo tenta escapar correndo o mais que pode.

LADRÃO – "Mas, o que é isto? É uma Pintura Viva ... com isto vou ser muito rico, milionário! – persegue o pintor – Anda cá minha linda, eu não te faço mal!"

O Pintor triste, escondido por detrás de uma cortina de veludo encarnada, pensa: "Isso querias tu! Tenho de chegar à porta da rua ... está tão longe! Queria tanto voltar ao muro do jardim. Ali, todos me apreciavam e eu era uma Obra de Arte. Agora sou ... um fantasma, uma coisa ..."

LADRÃO – "Anda cá, comigo vais ser muito feliz!"

Continuando escondido, o pintor fantasma decide: "Já é noite, tenho de fugir!"

A sua atenção, vai para uma janela por cima de si, entreaberta. Por ali talvez desse para escapar.

PINTOR – "Tenho de dar um bom salto ... e se não conseguir? Vou arriscar ... não posso falhar e o patife já está perto! – prepara-se para saltar – Cá vai, um ... dois ... três!"

E salta para o parapeito da janela. Quase caía.

PINTOR – "Consegui!"

Gritou de alegria o Pintor Triste. Agora, era só passar pela fresta da janela. Ao passar, uma corrente de ar empurra-o para dentro.

PINTOR – "SOCORROOOOO!!"

Gritava o pintor tentando-se segurar lutando contra o vento e as suas forças iam diminuindo. Uma vez mais foi descoberto.

LADRÃO – "Estás aí! Pensavas que me escapavas?! Já vais ver!"

No parapeito da janela, já em desequilíbrio, o pintor consegue segurar-se. A força do vento é enorme e ele, muito fraquinho. Entretanto o ladrão já subira para cima de uma grande caixa, esticando o braço procura-o.

PINTOR – "Estou a ver-lhe a mão! É agora, ou nunca!"

Com grande esforço, caminha inclinado para a frente e atravessa o pequeno espaço que dá para a rua.

PINTOR – "CONSEGUI! Livrei-me dele!

E escorrega pelo cano de esgoto, até à escuridão da rua deserta. Na Galeria o ladrão resmungava.

LADRÃO – "Maldito, quase te apanhei. Estou FURIOSO!! Mas não vou daqui de mãos a abanar!"

Pouco depois, ouvia-se a sirene de um carro da polícia.

Tanta confusão em tão pouco tempo de liberdade.

De volta ao parque e passando longe da "fonte do cara feia", a fonte proibida, o nosso amigo caminha solitário, tristonho, até ao seu antigo lar – o belo Muro Florido.

Abriu muito os olhos ao ver um vulto misterioso observando o local.

PINTOR – "Será o ladrão? .. Não, não me parece! Mas, ele está a limpar os azulejos! Vou ver mais de perto, tenho de ter muito cuidado!"

Era um senhor com uma gabardina cinzenta e boina na cabeça. Estava triste, lamentava-se.

ARTISTA – "Tanto trabalho para nada! Tudo destruído! Levei um mês e meio para terminar a minha obra. Agora, só restam cinzas!"

O Pintor Triste, escondido atrás de uma árvore, quase deixou cair um lágrima.

PINTOR – "Não posso chorar senão dou cabo da minha tinta! – limpa os olhos – Coitado, está tão desanimado! É o meu criador, foi ele quem me fez! Um grande artista!"

Cabisbaixo, o Artista afasta-se lentamente.

PINTOR – "Olha, vai-se embora. – grita – ESPERA! " mas o Artista não consegue ouvi-lo.

PINTOR – "E agora, o que vai ser de mim? Estou tão arrependido por ter desejado conhecer o mundo dos homens, dos artistas. Afinal, há homens maus, monstros, gente sem sentimentos! Ainda bem que não são todos iguais! ... Quem me dera voltar para a minha pintura, como se nada tivesse acontecido!"

Seria o Fim?

O dia começava a clarear. Mais um dia para o castigar.

As pessoas não tardavam por aí.

PINTOR – "Tenho de me esconder melhor! – procura um local – Ali deve dar!" E esconde-se numa abertura por debaixo da estátua de Santa Maria dos Mártires, ficando encoberto por ervas altas.

Aproximava-se alguém. Eram vários empregados da Câmara Municipal, comentavam o ocorrido: - "A tempestade fez das suas!" – "Tanta sujeira, vamos limpar isto tudo rapazes!" – "Basta de conversa. Ao trabalho!"

E que trabalheira, um varria, outro cortava e apanhava os ramos estragados, enquanto o terceiro lavava o muro de azulejos, antiga casa do Pintor Triste.

PINTOR – "Estão a aparecer os azulejos! ... lá está a pintura! ... parece que não ficou muito estragada?! ... quem sabe se ... ???" – fica pensativo.

Passaram-se duas horas, terminara a limpeza dos estragos. A pintura reaparecera no mural, com uma pequena restauração, tudo voltaria a ser como dantes. Só faltava um pormenor muito especial.

PINTOR – "Ai que lindo! Graças a Deus não ficou tudo destruído. Tenho que voltar à minha pintura antes que apareça mais alguém! ... tenho de ser rápido! ... MAS COMO?

Preparava-se para sair do seu esconderijo quando um cãozinho amoroso passeava pelo local farejando o melhor sítio para fazer as suas necessidades. Mais um problema para o nosso pequeno amigo.

PINTOR – "Outro monstro peludo, fui apanhado. SOCORRO!" gritava enquanto corria.

O cão ladrava de contentamento e surpresa. Aquilo era um brinquedo para ele, um brinquedo que fugia à sua frente na direcção do muro.

Não havia saída, nem podia recuar. Chegara o momento, não podia falhar e ... ZAP ... Com um espectacular salto, o Pintor Triste voltava ao seu quadro de azulejos, à sua pintura em tons de azul celeste.

Que pesadelo. Finalmente a Liberdade! Estava de volta ao seu Lar. Então ouviu-se:

ARTISTA – "Estás a ladrar porquê " Capitão"? Anda cá!" O Capitão não tirava os olhos da pintura no mural. O dono aproximou-se.

ARTISTA – "Vem cá não ouves?" – calou-se ao olhar para a pintura – MILAGRE! O Pintor voltou! A minha obra não foi destruída. Estou tão contente Capitão! Obrigado meu Deus!"

Estavam muito felizes os nossos pintores, o real e o do muro de azulejos.

Finalmente o nosso pequeno pintor voltara ao seu trabalho. Terminaria o seu quadro? Isso não era o mais importante, mas sim, o seu regresso ao parque e ao mundo da arte.

Um sorriso apareceu nos lábios do Pintor.

ARTISTA – "Vamos embora Capitão, tenho de ir trabalhar. Tudo está como dantes! – já se ia embora quando ... – Espera! Este sorriso não estava aqui!?! O Pintor está a sorrir Capitão! Terá sido por causa da tempestade? ... Estranho ... sabes Capitão, ESTÁ MUITO MELHOR ASSIM! PARABÉNS PINTOR ... ALEGRE!!! Vamos Capitão, já estou atrasado para a reunião na Academia dos Artistas!"

À saída do parque o pintor vira-se para trás:

ARTISTA – "O que terá realmente acontecido? Adeus PINTOR ALEGRE!"