segunda-feira, 30 de março de 2009

OS PENSAMENTOS DO GATO NERO

A. Lobo

Sou o único gato de uma ninhada de quatro gatinhos siameses.

Às minhas irmãs puseram os nomes que eu acho muito giros : Rosinha, Xaninha e Florinha, mas ainda estou para perceber por que razão me puseram o nome de Nero. De certeza que a minha mãe, a Tareca, e o meu pai que se chama Negrito, se pudessem tinham me dado outro nome.

Ouvi dizer que Nero era um imperador de uma cidade chamada Roma e que era meio maluco, até mandou deitar fogo à cidade.

Eu gostava que me tivessem posto o nome de Silvestre, que era um gato dos desenhos animados, ou Félix que era muito engraçado, ou então, Risonho que era aquele gato da história da Alice no País das Maravilhas que desaparecia e aparecia quando menos se esperava e é o que eu gostava muitas vezes de fazer.

Ouvi o Francisquinho que é o menino lá de casa, a dizer que esse gato, o Risonho, vivia num país em que a rainha gostava de cortar cabeças, e eu que gosta tanto da minha cabeça não gostava de viver nesse país. Mas o Francisquinho por vezes quer fazer de rainha, porque anda atrás de mim a ver se me agarra para me fazer maldades, sei lá, se calhar quer cortar a minha cabeça.

O telhado é o sítio onde eu gosto de estar, a lamber as minhas patinhas e lavar o meu pêlo, ao sol, rolar pelas telhas, andar atrás dos passarinhos que aparecem por lá, ou então dormir uma boa soneca.

Só não gosto quando aparece por lá o Farrusco que é um gato vadio, preto; dizem que o gato preto dá azar e olhem que é verdade, eu que o diga. Tem a mania que é um valentão e vem exibir-se para a gata do nosso vizinho, uma gata persa, lindíssima, com um pêlo que é um deslumbramento. Ela até não lhe liga nada, mas para chamar a atenção, ele desafia-me para uma luta, e eu não posso fazer má figura na presença daquela gata. Atiramo-nos um ao outro, e é pêlos pelo ar, arranhadelas a torto e a direito que quando acabamos a luta, estamos tão feios, tão feios, que a gata foge de nós a sete patas.

Há dias em que nós, os gatos, passamos muito mal, quando as pessoas andam zangadas, discutem, e nós os pobres animais é que sofremos. Quando na semana passada, o meu dono ralhou ao filho e deu-me uma sapatada, ainda estou para perceber a razão, fui para a beira do Francisquinho, rocei-me por ele e lambi-lhe as mãos e ouvi a minha dona dizer que eu só faltava falar.

Outra coisa que eu não percebo, é porque dizem que eu sou siamês. A minha mãe sempre me disse que eu nasci na dispensa, num cantinho atrás do saco das batatas, sobre jornais velhos, que ela achou ser um sítio muito quentinho para eu nascer, por isso eu sou português.

Dizem que o meu dono está reformado. Se reformado é passar o dia sentado a ver a televisão e a enxotar-me do sofá onde eu gosto de dormir a minha sesta, então há muito que deve estar reformado, porque desde que me lembro, ele não faz outra coisa senão enxotar-me, não me deixa sossegado. Outro dia fiquei danado quando o ouvi perguntar à minha dona.

- Ó Lena, para que serve este bicho?

O bicho era eu.

- Isto nem um ratinho apanha.

Mas que ideia mais estúpida. Quem foi que inventou que os gatos servem para apanhar ratos ? Isto não lembra ao diabo; para isso há ratoeiras. Ele que os vá apanhar, passa o dia sem fazer nada. Eu não nasci para apanhar bichos que não me fazem mal. Eu até gosto deles, são um bocado irrequietos, concordo, mexem-me por vezes com os nervos, é verdade, mas são muito simpáticos. A minha dona é que não gosta mesmo nada deles.

Eu não gosto muito de whiskas e dessas coisas de supermercado, gosto mais de um leitinho quentinho ou de uma comida fresquinha. Quando digo aos meus amigos o que a minha dona me dá, eles ficam vermelhos de inveja.

De manhã cedo, a minha dona vem sempre abrir a porta para eu ir ao jardim fazer as minhas necessidades porque eu sou muito limpinho. Desde pequenino que a minha mãe disse que isso era importante porque os patrões não gostavam de porcarias em casa. Depois arranho a porta para entrar, ela vem abri-la, eu salto para o seu colo enquanto ela toma o pequeno-almoço, faz-me umas festinhas, eu faço uns ronrons que ela tanto gosta e eu fico feliz, sossegado e enroscado no seu colinho.

Quando a minha dona vai de férias com o marido, é terrível, dá-me vontade de fugir, porque a estúpida da empregada para me arreliar gosta de me dar coisas que me fazem mal ; vejam lá, dá-me comida picante que ela gosta de comer. Aquilo faz-me um mal, muitas vezes não como nada durante o dia todo. Mas, às vezes, vingo-me, vou à despensa, e como as bolachas de chocolate que o Francisquinho gosta, e as culpas vão todas para ela.

A estúpida não gosta de gatos e passa a vida a dar-me pontapés. Da última vez dei-lhe uma arranhadela que ficou marcada pelas minhas unhas na perna. Claro que me ficou cara a brincadeira porque pôs-me fora de casa e eu passei a noite na rua. No dia seguinte quando a minha dona percebeu que eu tinha passado a noite na rua, até fiz um ar infeliz para ela ter pena de mim, e ver o mal que aquela malvada me tinha feito, deu-lhe um grande raspanete e a partir daí as coisas melhoraram, não sei até quando.

A minha irmã Rosinha foi morar com uma família que mora aqui perto. Os miúdos da casa tratam muito mal dela, andam sempre a fazer-lhe maldades. Outro dia ataram-lhe uma lata de conservas ao pobre rabinho dela. A Rosinha com o barulho que a lata fazia a bater nas coisas, assustou-se tanto que fugiu para o telhado e quanto mais corria mais a lata batia nas telhas. Valeu-lhe um menino que estava à janela do sótão que a chamou e desatou-lhe a lata e fez-lhe umas festinhas. A minha irmã ficou muito contente que até lhe lambeu a cara.

A minha dona tem ido tomar conta da mãe, que é uma senhora já velhota, porque teve um problema de saúde.

Se a minha dona continuar a ir tratar da velhota, não sei se vou aguentar muito esta situação. Aquela gente lá de casa não tem sentimentos, o meu dono só me chateia, não gosta de mim, a empregada só me dá pontapés e o Francisquinho é um estúpido, apesar de eu gostar dele. Se calhar não pensam que nós, os gatos, somos animais como eles, que temos direito a viver, a sermos bem tratados, e não sermos abandonados como acontecem a muitos dos meus amigos.


Outro dia quando andava pelos telhados, muito triste, tinha levado mais um pontapé da empregada e o menino que tratou da minha irmã, julgava que eu estava abandonado, chamou por mim. Fez-me muitas festas e estivemos a brincar durante muito tempo, mas como estava a ficar tarde, e antes que a empregada me fechasse a porta da casa, fui-me embora e vi que ele ficou muito triste.

Se continuarem a tratar-me mal, meus amigos, eu gosto muito da minha dona, mas Fiel é o nome do cão do meu vizinho, e eu sou um gato e sei de quem gosta de mim.