domingo, 22 de agosto de 2010

Lucia e a cidade









Lúcia adorava livros, mas em sua casa quase não conseguia ler. Sua mãe, Florinda, elegante e jovem achava que livros juntavam muita poeira, não combinavam com a decoração da sala.



Só permitia que a filha guardasse os livros escolares numa pequena prateleira em cima de uma escrivaninha no próprio quarto.

Além do mais, ela dizia que mulheres ficam feias de óculos e muita leitura

"faz mal para a vista".

Lúcia era obrigada a se contentar com a biblioteca da escola, onde, por sorte, havia muitos livros.

E também lhe restavam as noites de sábado na casa dos avós. Quando seus pais saíam com os amigos nos finais de semana, era lá que ela ficava.

Foi nos livros mais antigos de seu avô que Lúcia descobriu coisas muito interessantes. Mas de todas as descobertas de Lúcia, a mais interessante foi a história de Follet, o elemental das luzes. Duendes estavam na moda. Todos na sua classe, colecionavam bonequinhos de duendes para usar como talismã.



Lúcia nunca ia ao campo. Seus pais detestavam montanhas porque "nesses lugares muito calmos não há o que fazer".

Às vezes, pensando que jamais seria capaz de penetrar na dimensão mágica dos sonhos, das idéias luminosas,

dos seres imaginários.

Até que aconteceu, inesperadamente. Numa tarde de chuva, Lúcia estava em casa sozinha e um pouco cansada. Resolveu experimentar seu novo jogo de vídeo game: "Secret worlds".






A primeira fase foi fácil ultrapassar: as comportas de um labirinto se abriram e uma profusão de criaturas estranhas vindas dos mundos secretos começou a lotar a tela de sua TV.

Lúcia não conseguia fazê-las parar. Aqueles seres eram muito estranhos. Pequenos. Verdes. Os olhos vermelhos.

Engraçado era um menino com uma roupa esquisita. Sorria. Mais do que os outros. Parecia até que estava vivo. Parecia que ele via. Era incontrolável. Lúcia estava chegando à última fase e o menino não saía da tela. Será que o jogo estava com defeito? Tinha sido tão caro . . .

Lúcia nunca foi capaz de se lembrar direito como foi que o elemental saltou da tela. Só lhe restou na memória a imagem de um jovem sorridente, de pele translúcida e esverdeada, sentado com as pernas cruzadas bem ao lado de seus pés.

"Estou alucinando!", foi o que ela pensou quando ele tirou o chapéu colorido e fez uma reverência.

"Muito prazer menina Lúcia. Sou Follet, o folião, o companheiro preferido de todas as cortes do mundo."

"Gosto de você. É minha escolhida. Você terá tudo o que deseja!", afirmou categórico.

"Por que usa estas roupas tão estranhas? Parece até uma espécie de Peter Pan." A pergunta atravessou a mente da menina.

"Querida! Se sua mãe a deixasse ler . . . Este é um traje medieval. Adorei a Idade Média . . que alguns chamam de Idade das Trevas . . . Que piada! Aquilo, sim, foi a Idade da Luz, da Luz e da Magia. Uso as mesmas roupas em homenagem à minha época preferida. Eu recebia tantos presentes! Inúmeras canções e poemas! E, mais tarde, tive um amigo muito querido - William Shakespeare, ele se chamava. Escreveu uma peça deliciosa sobre nossa espécie, os elementais. Você ainda não leu a obra dele?

Não leu "Sonho de uma noite de verão"?"








O elemental não parava de falar. "Até que agora estou começando a me divertir outra vez! Adoro esta folia dos concertos de rock. Todo mundo pulando e cantando!

Cabelos longos . . .Ar livre . . . É igualzinho a antigamente! Faixas! Bandeiras! Só faltam os cavalos. Vamos! Coloque música para mim! Apague as luzes. Você vai conhecer o meu talento."

"Espere!", pensou Lúcia. "De onde você veio?"

"Habito luzes, cores, imagens em movimento. lendas nunca morrem. Escondem-se nos jogos, e dos jogos os homens jamais se cansam. Mas chega dessa conversa. Faça o que eu lhe pedi."

Lúcia que nem conseguia mais pensar, obedeceu às ordens. Ao primeiro acorde do disco o quarto foi invadido por vaga-lumes dançantes que riscavam o escuro da cores fulgurantes enquanto a cama parecia flutuar.

Mas de manhã, quando abriu os olhos, viu que o quarto era exatamente o mesmo de antes.








Foi à escola e voltou correndo. Trancou a porta à chave. Colocou o cartucho "Secret worlds".

Será que não é o mesmo jogo?", pensou.

O que ela viu na tela era absolutamente normal. Um jogo simples e até meio sem graça.

Passou o fim de semana com os avós, como sempre. Mas, pesquisando nos livros empoeirados da biblioteca, descobriu uma história que a deixou meio preocupada.

Parecia que na Irlanda um homem havia conseguido penetrar no reino das fadas. Apaixonou-se por uma delas. Quando voltou à vida cotidiana, o mundo perdera a graça. O jovem envelheceu tentando reencontrar a entrada para aquele mundo secreto onde penetrara por acaso.

Será que ela ficaria igual a ele?

Seu quarto agora lhe parecia ainda mais vazio. se ela pudesse contar a alguém . . .Mas certamente diriam que estivera sonhando.Foi então que aconteceu outra vez. No meio de um congestionamento no centro da cidade.

Anoitecia, o carro estava abafado. Seus pais não paravam de discutir. Lúcia sentia muita fome. Fechou os olhos e sua mente captou uma presença familiar.

Alguém que a cumprimentava sem que ela ouvisse palavras ou vozes. Abriu os olhos e viu formas brilhantes e musicais dançando no meio dos luminosos. As bolas de luz se transformaram em minúsculos seres que rodavam sem parar em volta do carro.

Imediatamente, todos começaram a se afastar e surgiu uma passagem no meio da avenida. Seu pai custou a perceber a brecha. Depois, afundou o pé no acelerador. E . . . o carro decolou.



Quando passaram pelas janelas dos prédios, Lúcia viu que muitas famílias se preparavam para jantar.